quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

JUÍZES E SEGURANÇA PÚBLICA: uma pesquisa e um mito.



De todos os mitos que interagem no universo processual penal, há um sempre presente em regimes autoritários que se apresentam travestidos de Estados de Direito: o de que o processo penal é um instrumento de segurança pública/pacificação social. Esse mito faz com que o processo penal passe a ser visto como mero meio de atingir indivíduos que violam a norma penal e, em conseqüência, os atores jurídicos (juízes, promotores, defensores, advogados, etc.) atuem preocupados com critérios de eficiência tão ao gosto de visões economicistas, isto é, passem a acreditar que as formas (meios) processuais só se justificam e devem ser respeitadas se necessárias à eficiência punitiva.
Tem-se, então, uma visão de mundo que compreende o processo penal como mero instrumento de repressão e controle social, enquanto o juiz criminal passa a figurar como órgão de segurança pública ao lado das instituições policiais e do Ministério Público. Há, também, uma tendência à administrativização do juízo criminal, que passa a atuar de maneira parcial no combate aos “criminosos” (o juiz como “inimigo” do criminoso). Ao mesmo tempo, essa perspectiva gera uma epistemologia autoritária, avessa a imposição de limites ao poder de punir, bem como o enfraquecimento das garantias processuais, que passam a ser vistas como entrave à eficiência repressiva.
Entretanto, a crença na utilidade do processo penal na pacificação social não encontra suporte em pesquisas empíricas acerca dos efeitos da persecução penal no acusado/punido e na coletividade. Registre-se que, no Brasil, poucas são as pesquisas sobre o tema e, por vezes, duvidosa a metodologia aplicada. Das pesquisas empíricas que focaram nos efeitos produzidos àqueles que figuraram como réus no processo penal e foram condenados, pode-se, em regra, afirmar que “é de se supor, no melhor dos casos, um não efeito e, no pior dor dos casos, um efeito contraprodutivo”.[1] De igual sorte, dados empíricos também permitem concluir que a ameaça do processo penal, ou melhor, o risco de descobrimento da autoria do crime e de persecução “pouco influencia a disposição para o comportamento delituoso”.[2]
Tanto pela ausência de pesquisas sobre o tema no Brasil quanto pelos resultados alcançados no exterior[3], percebe-se que não há qualquer comprovação de que tanto o direito penal quanto o processo penal sejam capazes de atender ao ideal de pacificação social. Ademais, mesmo que se confirmasse a utilidade do processo penal à chamada “segurança pública”, ter-se-ia que indagar se, ao menos no Estado Democrático de Direito, o fim visado justificaria o afastamento dos diretos e garantias previstos na Constituição Federal.
Aliás, em relação à realidade do sistema penal, com Vera Andrade, pode-se afirmar que enquanto suas funções declaradas ou promessas (ressocialização dos condenados, intimidação dos infratores potenciais, etc.) “apresentam uma eficácia meramente simbólica (reprodução ideológica do sistema) porque não são e não podem ser cumpridas, ele cumpre, latentemente, outras funções reais, não apenas diversas, mas inversas às socialmente úteis declaradas por seu discurso oficial, que incidem negativamente na existência dos indivíduos e da sociedade, e contribuem para reproduzir as relações desiguais de propriedade e poder”[4].
A crença na pacificação social através da atividade dos magistrados encontra-se em consonância com um discurso que insiste em sustentar que o sistema penal existe para a defesa de bens jurídicos considerados indispensáveis à vida em sociedade. Porém, a funcionalidade real do sistema penal revela (e sempre revelou) uma estratégia de controle social seletiva, direcionada à manutenção do status quo, do modelo de produção capitalista e da sociedade de consumo.
O mito de que o processo penal é um instrumento de pacificação social enuncia uma finalidade inalcançável, poder-se-ia dizer lacanianamente que se trata de um enunciado do impossível,[5] com o objetivo de produzir o efeito de tornar razoável, através da fabricação de um consenso na comunidade, o afastamento das inviolabilidades previstas na Constituição Federal.
Recorre-se, para tanto, a conceitos abertos e indeterminados (como, v.g., “razões de Estado”, “personalidade voltada para o crime”, “credibilidade do Poder Judiciário”, etc.), prenhes de crenças indemonstráveis empiricamente, aptos a justificar o afastamento das formas processuais, que, então, deixam de ser preservadas como garantias[6] para se tornarem óbices à realização dos fins perseguidos. 
Em pesquisa[7] realizada através de questionário apresentado a todos os juízes criminais em atuação no mês de maio de 2011 no fórum central da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, foi possível observar indícios de que os magistrados fluminenses, em sua maioria, acreditam atuar como agentes garantidores da segurança pública. Na ocasião, foram apresentadas três questões objetivas e fechadas (1ª – Nas decisões criminais leva-se em conta a questão da segurança pública? 2ª – As decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade? 3ª O bem jurídico “segurança pública” é levado em consideração no momento da fixação da pena?). Não obstante a proposta de que as respostas fossem escolhidas dentre duas opções predefinidas (sim ou não), alguns sujeitos pesquisados fizeram questão de fundamentar suas posições por escrito, mesmo diante da informação de que os respectivos nomes não seriam divulgados.
Dos vinte e sete juízes criminais em atuação na Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro durante o mês de maio de 2011, dois não quiseram responder ao questionário. Assim, do universo de vinte e cinco sujeitos pesquisados que apresentaram respostas ao questionário, vinte e um responderam “sim” à primeira questão (ou seja, que levam em consideração a “segurança pública” ao decidirem casos criminais) e quatro responderam que não. Um dos magistrados entrevistados, embora tenha respondido “não” à questão, apresentou justificativa por escrito, na qual constou que “nas decisões relativas às medidas cautelares” a segurança pública “pode ser levada em conta, mormente quando envolvem organizações criminosas estruturadas”.
No que tange à segunda questão, dezesseis juízes responderam que “sim”, manifestando a crença de que as decisões criminais produzem efeitos na redução da criminalidade, enquanto seis responderam que “não” e três afirmaram não poder responder a essa pergunta.  Frise-se que dos seis magistrados que responderam “não” à questão, alguns espontaneamente apresentaram considerações por escrito. Um desses magistrados afirmou que “Infelizmente, não, em função de uma legislação penal e processual penal benevolente”, certo de que a “exigência do trânsito em julgado e a infinidade de recursos existentes, postergando sempre a execução da pena carcerária, além do descrédito que trazem para a Justiça, não produzem os efeitos desejados na redução da criminalidade”. Outro juiz criminal externou a opinião de que as decisões não produzem efeitos “por causa do sistema e não da decisão”, enquanto um terceiro magistrado deixou explicitado que “no Rio de Janeiro, não”.
Ainda sobre a segunda questão, um dos magistrados pesquisados respondeu “sim”, mas fez questão de complementar: “se só tivermos juízes rigorosos, a criminalidade vai reduzir em curto prazo”. Curioso notar que dos vinte juízes que responderam “sim” à primeira questão, treze também responderam “sim” à segunda, enquanto quatro deles responderam que “não” e três optaram por não responder.         
Por fim, doze juízes responderam “sim” à terceira questão, admitindo levar em consideração o bem jurídico “segurança pública” também no momento da fixação da pena. Dos treze que responderam em sentido negativo, um se manifestou em dúvida (certo que, por escrito, deixou consignado: “mais para não”). Outro juiz, também por escrito, externou que “de forma mediata sim, imediata não”, porque a segurança pública não está prevista no artigo 59 do Código Penal. Vale mencionar que um dos magistrados que respondeu “sim” à terceira questão acrescentou que nas hipóteses em que o sentenciado “integra organizações criminosas, ou, ainda que não as integre, demonstra um perfil violento, que põe em risco a coletividade, o juiz pode e deve considerar aquele bem” (sic), enquanto outro afirmou que levar em consideração a “segurança pública” no momento de fixar a pena era “forma de dar exemplo”.     
Como se pode perceber, a pesquisa de campo, na qual a crença no processo penal como instrumento de pacificação social/segurança pública foi abordada em seu ambiente próprio, com todas as limitações inerentes à metodologia e à técnica empregada, apontou para a subsistência desse mito, capaz de produzir efeitos de verdade, no imaginário dos atores jurídicos responsáveis pela solução/acomodação dos casos penais.  
Para desconstruir esse mito, deve-se levar a sério o sistema penal, sem, contudo, cair na tentação ingênua de procurar (re)legitimá-lo. O sistema penal não é[8], nem nunca vai ser, um instrumento democrático ou de respeito à alteridade. Isso porque é impossível desassociar o sistema penal de sua marca excludente: a seletividade. Porém, na tentativa de reduzir os danos de seu funcionamento concreto, deve-se considerar a Constituição Federal como a estrutura legal que funda o Estado Democrático, em especial por conter as diretrizes necessárias tanto à contenção do poder quanto à articulação que deve existir entre a política, os direitos e garantias individuais, o poder de punir e a atividade das agências estatais envolvidas na persecução penal.
Dentre o instrumental estatal, o direito “se apresenta como o instrumento menos arbitrário, e o que apresenta maiores garantias frente aos abusos do poder”.[9] Nessa ótica, o Processo Penal surge (e só se justifica) como limite ao poder estatal, ao poder punitivo, como contrapoder jurídico, na redução do arbítrio e na racionalização das respostas estatais aos desvios criminalizados.

  


[1] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 86. 
[2] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 87. 
[3] ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal; trad. Juarez Cirino dos Santos e Helena Schiessl Cardoso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010; ALBRECHT, Hans-Jörg. Legalbewährung bei zu Geldstrafe und Freiheitsstrafe Verurteilten. Max-Planck-Institut, Freiburg, 1982; EGG, Rudolf. Sozialtherapie im Justizvollzug. Entwicklung und aktuelle Situation einer Sonderform der Straftäterbehandlung in Deutschland. In Giutérrez-Lobos, Katschnig, H.& Pilgram, A. (Orgs.). Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft; Jahrbuch für Rechts- und Kriminalsoziologie, 2002, 119-135; dentre outras.
[4] ANDRADE, Vera Regina Pereira. Sistema penal e cidadania no campo: a construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In:  Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre:2003, p.132-133.
[5] Como explicitou Salo de Carvalho: “Ao traçar caminhos para atingir verdades não passíveis de experimento e ao potencializar valores morais absolutos que não se concretizam, a ciência esquece as urgências da vida, motivo pelo qual qualquer otimismo com as potencialidades da razão seria ilusão, profissão de fé” (CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 58). 
[6] BINDER, Alberto M. O descumprimento das formas processuais : elementos para uma crítica da teoria unitária das nulidades no processo penal. Tradução de Ângela Nogueira Pessoa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
[7] A pesquisa foi realizada, ao longo do mês de maio de 2011, através da técnica de questionário com questões fechadas. Uma análise mais aprofundada dos dados obtidos pode ser encontrada em “CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal: do imaginário autoritário brasileiro à atuação dos atores jurídicos. Rio de Janeiro, mimeo, 2011).
[8] RUCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto.  Punição e Estrutura Social. Trad. de Gislene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004 . 
[9] BINDER, Alberto M. Política criminal: de la formulación a la práxis. Buenos Aires: Ad-hoc, 1997, p. 53.

5 comentários:

  1. Caro Rubens, renovo meus cumprimentos pelo lançamento deste seu excelente blog e aproveito para também felicitá-lo pelo texto - o qual tomei a liberdade de recomendar no http://justicaemais.blogspot.com/. Direto e claro, sem deixar de ser profundo e verdadeiro, ao tempo que se "rebela" contra falsos consensos...

    Abraços!

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  2. Sobre interpretações criminalizantes:

    "Não existem fenômenos jurídicos, nem jurídico-penais, mas apenas uma interpretação jurídica e jurídico-penal desses fenômenos. Em consequência, não existem fenômenos criminosos, mas apenas uma interpretação criminalizante dos fenômenos; e, pois, uma interpretação tipificante, culpabilizante etc." (Paulo Queiroz)

    http://pauloqueiroz.net/oito-teses-de-direito-penal/

    Oi, Rubens! Gostei bastante do seu texto. Trouxe a primeira de oito teses de Direito Penal para dialogar com ele: foi no que pensei de cara; assim que acabei de ler o post. Agora, vou atrás da sua tese (ou de outro artigo seu). Vida longa ao "Não Passarão"! Gde abraço.

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  3. Ivana,concordo com o Paulo Queiroz. O problema no Brasil é que a pré-compreensão, que condiciona toda e qualquer interpretação, é autoritária. Obrigado pela força.

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  4. Li o texto cada vez com maior assombro. E, continuo assombrado. Grato pela informação tão importante. Se esse questionário fosse feito com os juízes criminais em todo o RJ, ou melhor, em todo o Brasil, e o resultado fosse o mesmo, poderíamos dizer que a Justiça Criminal brasileira vai sair do CTI, para o cemitério, e que a Democracia pode sofrer uma infecção generalizada e ir junto.

    Mas enquanto há vida há esperança, e a minha está sobrevivendo graças a decisões que tenho visto de Magistrados que podem e devem ser chamados assim. Não nos conhecemos, mas o tenho acompanhado, assim como acompanho outros Magistrados que também engrandecem a magistratura nacional, muitos deles membro, igualmente, da Associação Juízes para a Democracia.

    E é em Magistrados como vossa excelência que este cidadão deposita sua fé quanto à garantia dos direitos fundamentais de cada um de nós.

    Sem essa garantia o que temos é qualquer coisa, menos democracia.

    Continue a luta! Nessa marcha os Magistrados não ficarão sozinhos.

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