terça-feira, 13 de agosto de 2013

Busca e apreensão no contexto das manifestações populares: indeferimento.


 

 

 

Ref. Procedimento n. º: 0218550-03.2013.8.19.0001

 

 

DECISÃO

 

Trata-se de investigação preliminar para apurar a prática dos crimes de dano (artigo 163 do Código Penal) e de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (artigo 155, §4º, incisos II e IV, também do Código Penal) de 198 aparelhos  de telefonia celular, 44 chips e 5 modens,  ocorrido no dia 20 de junho de 2013, por volta das 20h, na Avenida Presidente Vargas. Segundo o Registro de Ocorrência de fl. 03, um grupo de manifestantes teria entrado em uma loja da sociedade empresária “Claro”, destruído o local e furtado diversos equipamentos.

A autoridade policial representou por medida cautelar de busca e apreensão através da peça de fls.96/105.

O Ministério Público manifestou-se pelo deferimento do pedido  de busca e apreensão, consoante revela a promoção de fl. 106.

 

É o breve relatório. Passo, pois, a decidir.

 

Cumpre, desde o início, deixar consignado que todo e qualquer ato da persecução penal (ou seja, da atividade estatal voltada à imposição e uma resposta  penal para uma conduta apontada como delituosa) deve se dar dentro dos marcos do Estado Democrático de Direito. Este se caracteriza: a) pela existência de limites ao exercício do Poder (de qualquer poder); b) pela atuação do Poder Judiciário como garante da normatividade constitucional.

São os limites impostos pelo Estado Democrático de Direito que estão a impedir, por exemplo, a instrumentalização/coisificação dos indivíduos e que o processo penal seja utilizado para facilitar perseguições ou vinganças políticas. No Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais aparecem, ao longo da história, como trunfos contra maiorias de ocasião, governos autoritários e agências estatais comprometidas ora com o poder político ora com o poder econômico.

O pedido formulado pela autoridade policial e corroborado pelo Ministério Público vem em uma quadra histórica marcada por um movimento popular que ainda carece de uma melhor compreensão. E, por ser um fenômeno novo, ainda gera medo e impõe reflexão de todos, inclusive dos atores jurídicos, sempre a partir de uma racionalidade ligada à realização dos direitos humanos e que parta daquilo que se convencionou chamar de “desejo de democracia”.

Ao lado daqueles que vislumbram nesse movimento de pessoas (de muitas pessoas) uma multidão, radicalmente democrática, múltipla (múltiplos desejos, múltiplas culturas, múltiplas visões de mundo, etc.), composta de diferenças internas, mas com uma pauta comum, existem outros que passaram a apostar na existência de uma massa, tendencialmente fascista, em que as diferenças estão submersas, caracterizada tanto pela indiferença quanto pela tentativa de esmagamento das diferenças. Ademais, não se pode, ainda, descartar a possibilidade de que um movimento legítimo possa ser utilizado, por grupos de interesse, como uma arma política contra governos, populares ou não, ou pessoas.

Tudo isso está a exigir cuidado da Agência Judicial ao julgar no atual contexto. Cuidado que deve ser redobrado em uma quadra histórica em que os meios de comunicação de massa passam a reproduzir notícias de que agentes estatais estariam infiltrados em meio aos manifestantes para provocar desordem e justificar o incremento da repressão policial.   

Diante desse quadro, e em razão dos últimos acontecimentos, torno explícito, de início, por mais desnecessário que isso possa parecer, a adesão aos postulados democráticos e republicanos, dentre os quais se destaca o da legalidade estrita.

Compulsando a representação da autoridade policial (fls.96/105) e a promoção do Ministério Público (fl. 106), verifica-se que não consta a individualização dos bens a serem apreendidos.

Em se tratando de medida que implica o afastamento de direito assegurado na Constituição da República, o requerimento estatal, além de conter todos os requisitos enumerados no artigo 243, do Código de Processo Penal, deve necessariamente ser o mais certo e determinado possível. Essa exigência, por evidente, deriva do dever de motivação dos atos estatais (inclusive, os atos judiciais, esses por força do artigo 93, inciso IX, da Constituição da República).

Como ensina LUCIANO DUTRA, “a motivação da decisão judicial, com a perfeita identificação do que se busca, é requisito essencial da medida, uma vez que torna possível aferir a existência dos pressupostos de legitimação e validade do ato extremado”.[1] No caso em exame, em razão da ausência desses elementos tanto na representação policial quanto na promoção do Ministério Público, torna-se impossível individualizar os bens no mandado judicial pretendido pelos órgãos da persecução penal, o que impede a explicitação dos limites (sempre, e sempre, estritos) desse tipo de decisão.

Mas, não é só.

Há também uma ilicitude no início da investigação preliminar a contaminar a pretendida diligência de investigação ora pretendida. Registre-se que isso só foi percebido em razão do Ministério Público ter afirmado (fl. 106) que a autoridade judicial teria se intrometido na seara da investigação. Como erros acontecem, foi-se verificar o acerto, ou não, da crítica do parquet e isso tornou possível identificar que a decisão de fls. 79/80 foi descumprida. Note-se que essa decisão, com o fim de verificar a utilidade-necessidade do pedido de quebra de sigilo de dados telefônicos, limitava-se a determinar que a operadora CLARO esclarecesse se todos os aparelhos e chips furtados estariam sendo utilizados.

Não obstante, a Operadora CLARO acabou ultrapassando os limites da determinação judicial, o que levou, inclusive, a autoridade policial a desistir do pedido anteriormente realizado (fls. 27/28).

Mas, mais uma vez, não é só.

A investigação preliminar tem por objeto os crimes de furto e de dano já mencionados. Todavia, as medidas cautelares pretendidas se voltam contra pessoas que a própria autoridade policial afirma não serem os autores da subtração.   Registre-se, como bem percebeu o diligente signatário da peça de fls. 96/105, que não é possível afirmar que as várias pessoas indicadas pela autoridade policial foram os autores da subtração investigada. Não há pertinência subjetiva entre a investigação desenvolvida e os eventuais atingidos pela medida cautelar de afastamento de uma garantia constitucional.

Note-se que a autoridade policial afirma que “ao serem ouvidos, os receptores poderão indicar de quem compraram os telefones, levando-nos à autoria do crime em apuração no presente procedimento” (fl. 97). Ora, para apurar a autoria do crime de furto, com a oitiva dos supostos “receptadores”, não se faz imprescindível, ao menos neste momento, a busca e apreensão pretendida.   

A medida pleiteada revela-se, pois, desnecessária aos fins declarados pela autoridade policial. Vale lembrar que apenas em Estados autoritários prefere-se o uso da força em detrimento de medidas de cognição. Para ouvir as pessoas indicadas pela autoridade policial, em princípio, basta intimá-las a depor, como funciona em todas as democracias (ao menos, naquelas que são efetivamente democracias).

Em outras palavras: os elementos trazidos aos autos não permitem identificar a existência de “fundadas razões” (artigo 240, § 4º, do Código de Processo Penal) que justifiquem a intromissão na casa dos indivíduos indicados e o afastamento de direitos e garantias constitucionais.

Há também o fato de que os autos não permitem concretizar o controle da legalidade do afastamento de direitos constitucionais em relação ao polo passivo da medida cautelar. Isso porque não foi realizada qualquer investigação prévia que permita afirmar que os titulares dos dados (indevidamente) fornecidos pela operadora continuam a deter os aparelhos e os chips a que foram vinculados pelos IMEI’s (fl. 27). Em cognição sumária, ausente a probabilidade da autoria afirmada (fumus commissi delicti), impõe-se o indeferimento da medida pleiteada (in dubio pro direitos fundamentais).

 Outrossim, há também séria dúvida acerca da tipicidade material de   eventuais condutas que, do ponto de vista formal, poderiam se adequar, em tese, ao delito tipificado no artigo 180 do Código Penal (e que não é objeto da investigação preliminar em questão). Ter-se-ia, ao contrário, a atipicidade material diante da insignificância do valor dos objetos em poder dos sujeitos passivos da medida cautelar pleiteada. Ressalte-se, ainda, que, mesmo que se reconheça a tipicidade material dessas condutas, o delito subsistente permite medidas despenalizadoras, o que torna desproporcional o afastamento de liberdades públicas antes mesmo de instaurada investigação em desfavor dos mesmos pelo crime de receptação.                Neste sentido:

 

HC 96496 / MT - MATO GROSSO
STJ HABEAS CORPUS
Relator(a):  Min. EROS GRAU
Julgamento:  10/02/2009           Órgão Julgador:  Segunda Turma

Publicação: DJe-094  DIVULG 21-05-2009  PUBLIC 22-05-2009

PACTE.(S): CLEBER RODRIGUES BONDESPACHO DA SILVA

IMPTE.(S): DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO

COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

Ementa

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL. FURTO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICABILIDADE. OCULTA COMPENSATIO. 1. A aplicação do princípio da insignificância há de ser criteriosa e casuística. 2. Princípio que se presta a beneficiar as classes subalternas, conduzindo à atipicidade da conduta de quem comete delito movido por razões análogas às que toma São Tomás de Aquino, na Suma Teológica, para justificar a oculta compensatio. A conduta do paciente não excede esse modelo. 3. A subtração de aparelho celular cujo valor é inexpressivo não justifica a persecução penal. O Direito Penal, considerada a intervenção mínima do Estado, não deve ser acionado para reprimir condutas que não causem lesões significativas aos bens juridicamente tutelados. Aplicação do princípio da insignificância, no caso, justificada. Ordem deferida.

 

Por tudo isso, impossível o acolhimento das medidas cautelares pleiteadas, razão pela qual indefiro o pedido de fls. 96/105, corroborado à fl.106.

                                   Intimem-se.

 

 

Rio de Janeiro, 23 de julho de 2013.

 

 

Rubens R R Casara

Juiz de Direito



[1] DUTRA, Luciano. Busca e apreensão penal: da legalidade às ilegalidades cotidianas. Florianópolis: Conceito, 2007, pp. 162-163.

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